Pela primeira vez, Israel levou a guerra além das fronteiras conhecidas do conflito e atacou alvos do Hamas em Doha, capital do Catar. O movimento veio junto com a promessa de um “furacão” de bombardeios na Faixa de Gaza e com a ordem de evacuação completa de Gaza City, a maior cidade do enclave. É a maior escalada desde o fim da trégua que vigorou entre 19 de janeiro e 18 de março de 2025.
O que mudou desde o fim da trégua
A trégua desmoronou em 18 de março, quando Israel lançou ataques-surpresa em Gaza e anunciou que “retomou o combate com força total”. O gabinete do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu justificou a decisão dizendo que o Hamas recusou libertar reféns e rejeitou propostas para estender o cessar-fogo. O recado político foi direto: os bombardeios daquele dia eram “só o começo”.
Desde então, a campanha militar ganhou novo impulso. Israel colocou em marcha a chamada Operação Cume de Fogo, um ataque aéreo de longo alcance que mirou a liderança política do Hamas em Doha, a mais de 1.700 km de distância. Segundo o governo israelense, a ação — aprovada pelo gabinete de segurança — matou cinco membros do grupo, entre eles parentes de um dirigente sênior, Khalil Al-Khaya. É a primeira vez que Israel assume uma operação no território do Catar.
A escolha de Doha não é um detalhe logístico. O Catar é um dos principais mediadores do conflito, abriga figuras políticas do Hamas e tem papel central nas conversas sobre libertação de reféns e cessar-fogo. Poucas horas após o ataque, Doha chamou a operação de “agressão criminosa e violação flagrante do direito internacional”. Na prática, isso azeda o canal que vinha sendo usado para aliviar a crise.
Um ataque a essa distância exige planejamento raro: rotas aéreas longas, coordenação de voo e, normalmente, reabastecimento em pleno ar. Israel tem meios técnicos para isso, mas a mensagem vai além da capacidade militar. É política: alcançar líderes do Hamas onde eles se sentem mais protegidos e pressionar o grupo de fora para dentro, justamente quando se discutiam saídas diplomáticas.
Enquanto isso, em Gaza, o ritmo de bombardeios subiu. No dia 10 de setembro de 2025, Israel ordenou a evacuação total de Gaza City — uma cidade com cerca de 1 milhão de moradores. Panfletos lançados por aviões deram o recado: deixem a área porque as forças vão “operar com grande força”. Militares israelenses falam em assumir o controle da cidade. Isso costuma significar semanas de operações urbanas intensas, com avanço de blindados, varreduras de quarteirão e embates a curta distância.
Para quem vive lá, a ordem de evacuação não é um comando simples de cumprir. Ruas bloqueadas, transporte precário, famílias espalhadas, falta de combustível e medo de novos ataques no caminho tornam a fuga um risco real. Escolas e hospitais viram abrigos em minutos, e a pressão sobre serviços básicos explode. Sem eletricidade estável, água tratada suficiente e estoques médicos, qualquer movimento em massa colapsa o que ainda funciona.
- 19 de janeiro de 2025: começa a trégua entre Israel e Hamas.
- 18 de março de 2025: Israel retoma ataques e declara o fim do acordo.
- Data posterior ao fim da trégua: Operação Cume de Fogo atinge alvos do Hamas em Doha, no Catar.
- 10 de setembro de 2025: Israel ordena a evacuação completa de Gaza City.
Evacuação de Gaza City e o impacto humanitário
A evacuação de uma metrópole cercada raramente ocorre sem caos. Gaza City concentra mercados, hospitais de referência, prédios públicos e redes de apoio comunitário. Quando todos são empurrados para fora ao mesmo tempo, a cidade vira um labirinto de saída incerta. Sem corredores humanitários claros e garantia de segurança, famílias ficam presas entre permanecer no alvo e correr por rotas onde os confrontos podem chegar a qualquer momento.
Israel diz que o objetivo é quebrar a capacidade militar do Hamas e forçar a rendição do grupo. Em guerras urbanas, porém, a vantagem tecnológica costuma se diluir. Túneis, edifícios densos e ruas estreitas favorecem quem conhece o terreno. Para reduzir perdas, ataques aéreos e de artilharia tendem a preparar a entrada de tropas. O problema: esses mesmos golpes atingem áreas civis e atingem infraestrutura que a população usa para sobreviver.
Do lado diplomático, o ataque em Doha bagunça a mesa das negociações. O Catar não é apenas um anfitrião conveniente; é um ator que convence, paga contas humanitárias e fala com quem outros países não falam. Ao atacar em seu território, Israel pressiona o mediador e torna qualquer avanço mais caro politicamente. Mesmo aliados que apoiam a pressão sobre o Hamas se veem diante de uma pergunta desconfortável: como manter a mediação quando o mediador se diz atacado?
Juridicamente, a disputa é dura. O Catar fala em violação do direito internacional e de sua soberania. Israel invoca autodefesa e necessidade militar para neutralizar um grupo que considera terrorista e que mantém reféns. A Carta da ONU proíbe o uso da força contra a integridade territorial de Estados, mas há debates sobre exceções quando um Estado não consegue ou não quer impedir ataques lançados de seu território por um ator armado. Esse é o terreno cinzento onde a operação em Doha será discutida por juristas e chancelerias.
No campo prático, a pergunta é outra: o ataque muda a correlação de forças? Matar quadros do Hamas fora de Gaza interrompe cadeias de comando e comunicação por um tempo, mas o histórico mostra que o grupo substitui lideranças com rapidez. O efeito imediato é psicológico e político — um aviso de que não há refúgio inalcançável —, e um custo diplomático real, que pode fechar portas justamente quando elas seriam mais úteis para trocas de reféns e pausas humanitárias.
Para Israel, a narrativa é de pressão total até a rendição. Para o Hamas, é sobrevivência e propaganda: mostrar que resiste apesar de perdas e que consegue impor custos ao adversário. Entre esses dois polos, civis tentam atravessar checkpoints improvisados, procurar combustível, achar pão e remédio. Cada novo dia sem um acordo amplia as filas por água, aumenta a lotação dos abrigos e empurra hospitais ao limite.
O aviso de Tel Aviv de que virá um “furacão” de ataques deixa pouco espaço para ambiguidade. Em Gaza City, o recado já se traduziu em malas feitas às pressas e andares inteiros de prédios sendo esvaziados. Em Doha, virou nota oficial furiosa e pressão sobre embaixadas. E nas mesas de negociação, virou silêncio — aquele silêncio tenso que costuma anteceder ou um acordo inesperado ou mais uma rodada de fogo.
O que vem a seguir depende de três peças se moverem ao mesmo tempo: a operação terrestre que Israel sinaliza em Gaza City; a capacidade do Hamas de manter comando e moral; e a reabertura — ou não — do canal do Catar para uma nova rodada sobre reféns e cessar-fogo. Se uma delas travar, a espiral continua. Se duas alinharem, pode surgir uma pausa. Por ora, a aposta de ambos os lados é na força, não na conversa.