Na terça-feira, 18 de junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou uma emenda que pode tirar o direito de voto de mais de 400 mil pessoas no Brasil — mesmo que elas ainda não tenham sido condenadas por nenhum crime. A proposta, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), foi aprovada por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção. O texto altera o Marco Legal do Combate ao Crime Organizado — conhecido como PL Antifacção — para impedir que presos provisórios participem das eleições. A medida, que ainda precisa passar pelo Senado Federal, desafia uma das bases da Constituição: a presunção de inocência.
Um direito na teoria, um sonho na prática
A Constituição Federal de 1988 garante, no artigo 15, que apenas os condenados com sentença transitada em julgado perdem o direito político. Presos provisórios — aqueles que ainda não foram julgados — têm, teoricamente, o mesmo direito que qualquer cidadão. Mas a realidade é outra. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), das cerca de 400 mil pessoas em prisão provisória em 2022, apenas 12.963 conseguiram votar. Isso representa 3,24%. Ou seja: quase 97% dos que ainda não foram condenados foram impedidos de exercer um direito constitucional. Por quê? Porque o sistema não funciona.
A Resolução nº 23.669 do TSE exigia que essas pessoas solicitassem a transferência temporária da seção eleitoral entre 18 de julho e 10 de agosto de 2022. Mas onde estão as seções? O TSE tinha apenas 220 seções instaladas em presídios — cerca de 15% do total de unidades prisionais no país. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, não havia nenhuma. Em muitos estados, nem mesmo os agentes penitenciários sabiam que isso era possível. A burocracia, a falta de logística, o medo de responsabilidade — tudo conspirou para que o direito fosse apenas teórico.
“Voto exige liberdade”, diz quem quer tirá-lo
Van Hattem argumenta que o voto é “expressão da plena cidadania, pressupõe liberdade e autonomia de vontade, condições inexistentes durante a custódia”. Ele diz que manter o direito em vigor cria “riscos operacionais” e “custos desnecessários” para o Estado. Mas isso é um problema de infraestrutura — não de direito. O mesmo argumento já foi usado para negar o voto a mulheres, analfabetos e negros no passado. E foi superado. O que falta não é justificativa legal, mas vontade política para implementar.
A emenda diz ainda que a suspensão do voto “não antecipa penas” nem “ofende a presunção de inocência”. Mas isso é contraditório. Se a presunção de inocência é respeitada, por que tirar um direito político antes de qualquer condenação? O que a emenda faz é transformar a prisão provisória — que deveria ser exceção — em uma punição política. E isso é perigoso. Porque, na prática, 75% dos presos provisórios no Brasil são negros, e 80% são pobres. Tirar o voto deles é silenciar uma voz já marginalizada.
Os tribunais estão preparados — e desafiando a Câmara
Enquanto a Câmara aprova a emenda, os Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro e o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul já começaram a planejar seções eleitorais nos presídios para as eleições de 2024. Por quê? Porque a lei ainda é a Constituição. E até que o Senado mude isso, o voto continua garantido. Esses tribunais não estão desafiando o poder legislativo — estão cumprindo seu dever constitucional.
Na prática, isso cria um vácuo jurídico. Se o Senado aprovar a emenda, os TREs terão que decidir: obedecem ao novo texto ou à Constituição? O Supremo Tribunal Federal (STF) provavelmente será chamado a resolver. E aí, o país terá uma crise institucional. Porque, se o direito de votar for condicionado à liberdade física, onde fica o princípio da igualdade?
Um precedente que pode virar regra
Essa emenda não é só sobre presos provisórios. É sobre quem tem direito à cidadania. Se a prisão provisória basta para tirar o voto, por que não tirar o direito de trabalhar, de estudar, de receber assistência médica? A lógica é a mesma: “quem está preso não merece”. Mas a Constituição foi feita para proteger os que estão na margem — não para expulsá-los da sociedade. O Brasil já tem a maior população carcerária da América Latina. E a maior taxa de prisão provisória do mundo. Não precisamos de mais punição. Precisamos de justiça.
Em 2022, só 3,24% votaram. Em 2024, talvez nenhum. Mas o que isso muda na realidade? Nada. Ainda assim, o poder político quer apagar esse 3,24%. Porque ele representa uma ameaça: a de que, mesmo atrás das grades, alguém pode dizer “eu escolho”.
Frequently Asked Questions
Por que apenas 3,24% dos presos provisórios votaram em 2022?
Apesar de o direito ser garantido por lei, a logística é um obstáculo enorme. O TSE só instalou 220 seções eleitorais em presídios, menos de 15% do total de unidades. Além disso, os presos precisavam solicitar a transferência da seção em um prazo apertado — e muitos não tinham acesso a informações, documentos ou apoio jurídico. Em estados como Mato Grosso do Sul, não havia nenhuma seção.
A emenda da Câmara viola a Constituição?
Sim, no mínimo colide com o artigo 15, inciso III, que só suspende direitos políticos após sentença criminal transitada em julgado. A emenda tenta criar uma nova regra: a prisão provisória como causa de suspensão. Isso é uma alteração constitucional disfarçada de lei complementar — e só pode ser feita por emenda à Constituição, não por projeto de lei comum.
Quem vai ser mais afetado por essa mudança?
Negros, pobres e jovens. Dados do CNJ mostram que 75% dos presos provisórios são negros, e 80% vivem abaixo da linha da pobreza. Tirar o voto deles é silenciar quem já é excluído do debate político. É um golpe contra a representatividade — e não contra o crime.
O que acontece se o Senado aprovar a emenda?
O projeto vai para sanção presidencial e vira lei. Mas os TREs já estão preparando seções para 2024 — e podem desobedecer. O STF provavelmente será acionado para decidir se a nova lei é constitucional. O risco é uma crise entre os poderes, com eleitores presos sendo impedidos de votar enquanto os tribunais tentam respeitar a Constituição.
Há precedentes internacionais de tirar o voto de presos provisórios?
Na maioria das democracias, só os condenados perdem o direito de votar. Nos EUA, varia por estado — mas 22 deles permitem que presos provisórios votem. Na Alemanha e na Canadá, todos os presos, inclusive condenados, podem votar. O Brasil, ao tentar restringir o direito antes da condenação, está indo na direção oposta à maioria das nações com sistemas jurídicos sólidos.
O que pode ser feito para garantir o voto dos presos provisórios?
Precisamos de investimento em logística: seções móveis, parcerias com Defensoria Pública, campanhas de informação dentro dos presídios e treinamento de servidores. O TSE já tem a estrutura. O que falta é vontade política. A sociedade precisa pressionar para que o direito não seja apenas escrito na Constituição — mas vivido na prática.
Isso é um golpe mortal na democracia!!! Eles querem silenciar os mais pobres, os negros, os que não têm dinheiro pra pagar um bom advogado!!! E ainda dizem que é pra combater o crime??? NÃO!!! É pra combater a voz dos invisíveis!!! Eles não querem justiça, querem controle!!!