Dia do Gaúcho: feriado revela as muitas faces da identidade gaúcha

Dia do Gaúcho: feriado revela as muitas faces da identidade gaúcha

Por Leonardo

No 20 de setembro, o Rio Grande do Sul para — e discute a si mesmo. O Dia do Gaúcho não é só desfile, pilcha e churrasco. É memória de guerra, invenção de tradições, disputa de narrativas e um espelho de quem o estado quer ser. A data, que marca o início da Revolução Farroupilha em 1835, é menos sobre um passado congelado e mais sobre um presente em constante reinvenção.

Da praça de pequenas cidades às avenidas de Porto Alegre, o ritual é parecido: bandeiras tremulando, cavalgadas, mate passando de mão em mão. Só que por trás da estética que o Brasil inteiro reconhece, há camadas de história, política, economia, etnia e afeto. O gaúcho que entra em cena nesse dia não é um só — são muitos.

Origens históricas e disputas que moldaram o gaúcho

A Revolta dos Farrapos começou com um incômodo bem concreto: dinheiro. No século 19, a economia local girava em torno do charque, a carne salgada que alimentava boa parte do país. Produtores gaúchos queriam proteção alfandegária contra a concorrência do Prata. Do outro lado do rio, argentinos e uruguaios tinham vantagem: pastagens mais férteis, acesso melhor aos portos e uso de mão de obra livre. O Império demorava a responder, e o caldo entornou.

Os estopins do conflito se encaixam como peças de um quebra-cabeça:

  • charque gaúcho pressionado por preços e tarifas;
  • vantagem logística e produtiva de vizinhos do Prata;
  • disputa entre elites regionais e o centro imperial;
  • pedido de mais autonomia administrativa e fiscal;
  • um território de fronteira, acostumado a cavalgar entre ordens e lealdades.

Em 20 de setembro de 1835, a revolta estourou. Um ano depois, em 11 de setembro de 1836, os farroupilhas proclamaram a República Rio-Grandense. A ousadia tinha apoio de figuras que virariam lenda, como Giuseppe Garibaldi, e transbordou para o litoral catarinense, com o episódio da República Juliana. A guerra se arrastou por quase uma década, com avanços e recuos que deixam até hoje marcas no mapa afetivo do estado.

O desfecho, em 1845, veio por cima de exaustão mútua. O acordo conhecido como Poncho Verde encerrou as hostilidades com anistia geral e a incorporação de líderes farroupilhas ao Exército imperial. O Rio Grande do Sul voltava ao Brasil, mas com recados dados: a gestão central precisava ouvir melhor as províncias, e dali em diante a palavra “autonomia” ganharia peso na política brasileira.

Esse mesmo período expõe contradições incômodas. A sociedade farroupilha também se sustentava em trabalho escravizado. Os Lanceiros Negros, tropas formadas por homens negros — muitos alforriados sob promessa de liberdade —, lutaram com bravura. O episódio de Porongos, em 1844, quando um contingente negro foi surpreendido e massacrado, virou ferida aberta e tema de debate histórico até hoje. O mito do gaúcho livre e igualitário convive, portanto, com um passado que nem sempre incluiu todo mundo.

Mulheres também estão nessa história, mesmo quando os livros as empurram para o rodapé. Anita Garibaldi é o nome mais conhecido, mas havia muitas outras — nas estâncias, nas cidades, nas redes de apoio — que costuraram mantimentos, informações e estratégias. Se a guerra terminou no papel em 1845, a ideia de gaúcho como símbolo de coragem, honra e lealdade atravessou gerações e ganhou novos donos.

Com o tempo, a figura do gaúcho foi sendo lapidada. Como lembra o pesquisador Luciano Bornholdt, o personagem oficial não ficou preso à imagem do peão pobre que enfrentava riscos e intempéries. Nas narrativas celebradas, ele aparece como guardião de valores nobres: liberdade, honestidade, hospitalidade, bravura. Essa lapidação não foi espontânea; foi projeto cultural.

Da guerra ao mito: como a tradição se organiza hoje

Da guerra ao mito: como a tradição se organiza hoje

Terminada a revolta, começou outra disputa: a do sentido do que é ser gaúcho. No século 20, grupos de estudantes e intelectuais, em grande parte jovens urbanos com saudade de um campo que já não era o seu, deram forma a um movimento organizado. Desse caldo nascem os Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) e, depois, a estrutura que hoje domina a cena: o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).

O MTG diz reunir cerca de 2 milhões de participantes e opera por meio de aproximadamente 2 mil CTGs. Essa rede não se limita ao estado. Está espalhada pelo Brasil e pelo mundo, com núcleos em cidades tão distantes quanto Los Angeles e Osaka. A máquina cultural é potente: bailes, rodeios, festivais de música e dança, programas de TV, livros, escolas de dança, restaurantes temáticos, marcas de vestuário. É indústria da memória.

Tem também o calendário que sustenta essa indústria. A Semana Farroupilha, de 7 a 20 de setembro, é o ápice. Acampamentos temáticos tomam parques; as escolas entram no clima com apresentações; desfiles mobilizam municípios inteiros. A Chama Crioula, levada a cavalo por longas distâncias e alimentada em fogueiras comunitárias, virou o símbolo do tempo que não apaga. Pouco importa se esse ritual é relativamente recente: para quem participa, a sensação é de passado vivido no presente.

Esse tradicionalismo tem uma origem que ajuda a entender seu alcance. Não nasceu na Campanha profunda, mas em capitais e cidades médias, puxado por filhos de pequenos proprietários que foram estudar e trabalhar em centros urbanos. Muitos tinham sobrenomes alemães e italianos, e adotaram a cultura gaúcha como um idioma comum que ultrapassava a origem familiar. O gaúcho, assim, virou menos etnia e mais repertório: um jeito de vestir, falar, dançar, cozinhar, cumprimentar.

Por isso, o pertencimento furou fronteiras sociais e geográficas. Em bairros de Porto Alegre, Caxias do Sul ou Pelotas, o CTG virou a “segunda casa” de muita gente. Em cidades do interior, funciona como centro cultural e comunitário. No exterior, mantém laços de afetividade e um fio de volta para quem saiu. O mesmo símbolo que embala memórias do pampa se adapta ao asfalto sem grande esforço.

Há, porém, debates que a festa não resolve. Um deles é o lugar de negros, indígenas e migrantes nessa identidade. Quilombos do estado reivindicam visibilidade na narrativa oficial. Povos indígenas, como charrua, guarani e kaingang, seguem lembrando que estavam aqui antes das cercas e das estâncias. Em resposta, surgem iniciativas de inclusão: grupos negros em CTGs, pesquisas sobre lanceiros, projetos em escolas que apostam numa história mais ampla. Nem tudo é consenso, mas a conversa saiu do silêncio.

Outro debate é o das mulheres. A imagem pública ainda tende a colocar o homem a cavalo no centro, mas a prática mostra algo mais complexo. Peonias, prendas, lideranças jovens e professoras tocam a engrenagem da tradição nas cozinhas, nas coreografias, nos palcos, nos bastidores e, cada vez mais, nas diretorias. A pilcha feminina e a voz feminina ocupam espaço que antes não tinham.

Também existem choques com a vida contemporânea. Rodeios e provas campeiras sofrem pressão de organizações de proteção animal, que questionam a prática e pedem novas regras. A resposta varia: ajustes de regulamentos, fiscalização mais rígida, mudanças que tentam equilibrar patrimônio cultural e bem-estar. É uma negociação permanente, e o público cobra.

A política aparece no horizonte como apareceu no século 19: na palavra “autonomia”. De tempos em tempos, ressurge a discussão sobre separação do estado do Brasil, quase sempre em movimentos minoritários e com plebiscitos informais de pouca adesão. O que ganha mais tração é a pauta do federalismo, com cobrança por maior descentralização de recursos e decisões. O 20 de setembro serve de palco para discursos de todos os matizes, do mais memorialista ao mais militante.

No cotidiano, a identidade gaúcha também negocia espaço com a economia real. O campo segue forte, com pecuária e grãos, mas o estado é urbano e industrial. Metal-mecânico, tecnologia, logística, serviços, ensino superior: tudo isso convive com o fogo de chão e o chimarrão. A pilcha, reconhecida em lei estadual como traje oficial, entra em gabinetes, casamentos, igrejas e palcos. Sinal de que tradição aqui não é fantasia; é roupa de uso.

Educação e mídia ajudaram a consolidar esse repertório. O hino regional está nas escolas, o pavilhão farroupilha surge em varandas e carros, e a música nativista tem circuito próprio, com festivais que revelam compositores e intérpretes. Televisão e rádio abriram espaço a programas campeiros; as redes sociais multiplicaram tutoriais de churrasco, rodas de violão, desafios de dança. A mitologia que um dia precisou de folhetos e salões hoje cabe no feed do celular.

Falar em churrasco e chimarrão virou até lugar-comum. Mas há algo a notar: esses símbolos saíram do estado e foram adotados Brasil afora. O mate é rotina em repartições públicas de Brasília a Manaus; o fogo de chão inspira chefs e youtubers; a bota e a bombacha, antes discretas, pisam em palcos de festivais de música sertaneja e pop. Exportar cultura é trazer de volta olhares novos — e isso reconfigura, também, o que o gaúcho pensa de si.

Por trás da imagem solar dos desfiles, o Rio Grande do Sul lida com desafios duros, dos econômicos aos climáticos. Eventos extremos recentes — secas prolongadas e enchentes históricas — testaram comunidades urbanas e rurais. Nessas horas, a rede de CTGs e grupos tradicionalistas atuou como ponto de apoio para doações, abrigos, cozinhas solidárias. É quando a tradição mostra que, além de memória, também é ferramenta social.

Na Semana Farroupilha, uma cena se repete: uma mesa longa de madeira, o braseiro aceso, crianças de lenço no pescoço, avós contando causos. A fotografia é parecida em Santa Maria, Caxias do Sul, Santana do Livramento, Bagé. Essa repetição, que alguns veem como saudade de um passado idealizado, é para outros um pacto de comunidade. Feriado serve para isso: dar linguagem comum ao que poderia ficar disperso.

O 20 de setembro também é um lembrete de que identidades não são coisa parada. Foram feitas, são refeitas e, às vezes, são contestadas. O gaúcho de hoje carrega traços do peão do século 19, mas também do operário metalúrgico, da professora universitária, da cozinheira de festival, do artista que mistura vaneira com rock, do agricultor que pilota drone, do entregador que cruza a cidade de bicicleta com a cuia presa na mochila. É uma colcha de retalhos costurada com fio grosso.

Se alguém procura pureza, vai se frustrar. A força da identidade gaúcha está justamente na mistura: lusos e açorianos dos primeiros tempos, indígenas que nunca foram embora, negros que lutaram e resistiram, alemães e italianos que chegaram no século 19, migrantes do resto do Brasil. O pampa não é um museu. É fronteira viva, de ida e volta. E é nessa fronteira que o Dia do Gaúcho encontra seu sentido mais sólido: juntar diferença sob um mesmo teto, ainda que a conversa seja ruidosa.

Ao final da tarde do feriado, quando as bandeiras começam a baixar e as fogueiras viram brasa, uma pergunta retorna: o que desse dia fica no dia seguinte? Para uns, fica a memória da bravura. Para outros, o orgulho de uma cultura que se organiza e se projeta. Para muitos, fica o desejo de que a história contada inclua mais vozes. O certo é que o Rio Grande do Sul não se reconhece sem essa data — e a data não faz sentido sem o vai e vem de uma identidade em movimento.

Sobre o Autor

Leonardo Rivers

Leonardo Rivers

Sou um jornalista apaixonado por contar histórias. Trabalho como editor de notícias em um grande portal de notícias brasileiro. Amo escrever sobre os acontecimentos diários no Brasil e dar voz aos acontecimentos que impactam nossa sociedade.

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